Blues, Beat & Beer
quinta-feira, janeiro 26, 2006
  Le Lautrec

Eu morei um ano e meio em Grenoble. Antes mesmo de sair do Brasil, eu já tinha data marcada para a volta. Passei exatamente 18 meses naquele apartamento construído logo após a segunda guerra. Quando alguém caminhava, falava ou gemia no prédio, todo mundo ouvia. Mas o pior mesmo, era a velha do andar de cima que levantava as 4 horas da manhã para molhar as plantas na janela. A cada noite a gente acompanhava a cama rangendo até a velha levantar, a velha colocando os chinelos de sola de madeira, a velha andando até o banheiro, a velha caminhando até a janela, a água descendo pela parede e batendo em nossa persiana de ferro. Por fim, a velha ia até a cama e após alguns novos rangidos, podíamos dormir por mais algumas horas.

Um lugar que me chamou a atenção quando cheguei foi o Le Lautrec. Eu passava todos os dias pelo bar e sempre havia alguma Harley parada na frente. Quando eu passava por lá, eu reduzia o passo para ouvir os roncos das motos chegando e saindo do bar. A música era muito boa também, mas da calçada não dava para ouvir muito bem. Algumas vezes o barulho não era das motos, mas das discussões que aconteciam no bar. Um dia, passando pelo bar, eu comecei a caminhar mais devagar quando um tipo gordo, cabelo e barba grisalha saiu cambaleando do bar com uma garrafa de 1664 na mão. Atrás dele veio uma cadeira voando pela porta de entrada e logo após uma mulher que gritava. A gargalhada do cara era mais alta que os gritos da mulher histérica. Eu segui meu caminho. Olhei para trás da esquina e estavam o tipo e a mulher abraçados entrando no bar novamente.

Era um bom bairro este que eu morava. Muito estudante universitário e muito velho. Nas férias os estudantes desapareciam e só restavam os velhos. Eram muitos mesmo e sempre queriam conversar. Eu não me importava de ficar algum tempo ouvindo o que eles tinham para contar. Poucas vezes eram reclamações e na maioria das vezes rendiam boas risadas.

Isso me fez lembrar meu avós. Meus avós gostavam de cultivar o que seus pais trouxeram da Itália. Mesmo velho, meu avô continuava com as plantações no pequeno terreno atrás de sua casa. Ele podia até ter abandonado o velho cigarro de palha, mas o vinho continuava presente em cada refeição. Minha avó era alta e grande. Era ela que mandava na casa. Cinco filhos ainda moravam com eles. Eu estava sempre ocupado demais para vê-los. Eles moravam longe. Eu tinha sempre algo mais importante para fazer. Mesmo que fosse ficar dormindo no domingo de manhã. Lembro do dia que eles comemoraram 50 anos de casados. Estavam todos lá. Os 10 filhos com maridos e esposas e todos os netos. Foi uma grande festa. Todos estavam lá, exceto eu. Afinal, eu tinha coisas mais interessantes a fazer. Algum tempo depois, descobriram que minha avó tinha um tumor na cabeça. Fui vê-la depois da operação. Não ouvi uma palavra sequer de sua boca. Ela ficou o tempo inteiro dormindo. Minha tia falou que dias antes ela perguntou por mim, mas naquele momento ela só dormia. Eu não acreditava que era minha avó lá naquela cama. Não podia ser. Era uma outra pessoa. Uma desconhecida. Eu voltei para minha cidade no mesmo dia. Na segunda-feira, meu pai foi sozinho ao seu enterro. Eu não queria ir até lá para ver o enterro de uma desconhecida. Três anos depois chegou a hora de meu avô. Disseram que no final de uma tarde de trabalho atrás de casa, ele sentou na sua poltrona em frente a televisão e começou a levantar os braços dizendo que estava com as mãos amortecidas. Isso algum tempo antes de chamarem a ambulância para levá-lo ao hospital por causa do ataque cardíaco. Eu fui vê-lo no hospital. Ele me olhou de lado, mas não disse nada. Não consegui ficar no quarto nem cinco minutos e ele teve mais um ataque. A enfermeira nos tirou do quarto e eu voltei a Porto Alegre no mesmo dia. No domingo eu estava de volta para seu enterro.

Tudo isso veio do nada. Semana passada, eu estava sentado à mesa jantando e simplesmente lembrei. Terminei de comer. Tomei o ultimo gole de vinho e disse que ia sair. Vesti o casaco. Calcei os sapatos e sai em direção do Le Lautrec. Atravessei a rua e andei as três quadras que separavam meu apartamento do bar. Cheguei rápido. Era lá que eu queria estar agora. Mas estava tudo escuro. Fechado. Só havia uma placa na porta: "Vende-se ou aluga-se".
 

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Christon Delàs
christon.delas@yahoo.com

"It comes blundering over the
Boulders at night, it stays
Frightened outside the
Range of my campfire
I go to meet it at the
Edge of the light."
Gary Snyder
(How Poetry Comes to Me)

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