O Bispo
A carroça do bispo se movia lentamente puxada pela mula velha. O silêncio da madrugada só era quebrado pelo barulho de madeira rangendo e das rodas da carroça se movendo sobre o cascalho do caminho. O bispo obeso deixava a vila no meio da noite. A carta marcada com o brasão da
Ordem das Chaves Cruzadas não deixava opção ao bispo. Antes do amanhecer, ele deveria se unir a um cavaleiro e dois peões a noroeste da vila. O inimigo avançava e a presença de um religioso na frente de batalha era imprescindível.
Antes do crepúsculo, o bispo encontra o cavaleiro no meio do caminho. O guerreiro recuava numa tentativa de formar um novo ataque. "A Ordem das Chaves Cruzadas me envia de volta ao reino", era o que dizia o cavaleiro abatido em direção contrária.
- Pegue um pouco de pão e uma garrafa de vinho e siga teu caminho, diz o bispo.
O cavaleiro pega com um rápido golpe a comida e parte sem perda de tempo em direção ao reinado. Em contrapartida, o bispo segue seu caminho como ordenado. Agitando as rédeas para acelerar a mula velha, ele tentava reduzir o tempo de viagem. A esperança dos guerreiros no campo de batalha era o calvário da mula cansada.
Ao avistar o bispo, o peão corre em direção da carroça. Puxando as calças que caíam a cada passo, o bufão se joga ao pés do religioso, lamentando o resultado da última batalha, desastrosa e cheia de baixas.
- Que bo-bom que o se-senhor está aqui, meu bi-bispo, dizia o peão gago. Ti-ti-tivemos pe-perdas e te-tenho muito medo.
O guerreiro conta sobre a batalha que vem de acontecer. Ele descreve com detalhes a tentativa de ataque à rainha inimiga. O ataque tinha sido um desastre incrível. Várias mortes desnecessárias somente pelo nome da Ordem. Um verdadeiro massacre. A tristeza é ainda mais visível quando ele revela a morte de um amigo de infância esmagado por uma das torres do castelo. O bispo que havia saído do reino para amparar um cavaleiro e dois peões agora encontrava um único membro. Um peão baixinho, gago e medroso no meio do campo de batalha.
- Acalme-se meu filho, diz o bispo. Deus está conosco. Ele nos protegerá e nos ajudará a avançar. Para isso, basta que sejamos pacientes e sigamos Seus ensinamentos. O Senhor está do nosso lado e, em Seu nome, venceremos esta guerra contra nossos inimigos.
- Ma-mas meu bi-bispo, continuava o pequeno guerreiro. Porquê de-devemos comba-bater se nós nem me-mesmo conhecemos no-nosso inimi-migo? Em to-toda minha vi-vida, eu não lembro de ter fe-feito outra co-coisa senão lu-lutar. Já de-derruba-bamos vários Reis e pe-perdemos o-outros, ma-mas esta-tamos sempre em gue-guerra.
- Não cabe a nós questionármos as decisões de Deus, e sim segui-las. A dúvida nem mesmo deve existir...
- Mas senhor, interrompe o peão. Me-mesmo no-nosso Rei se-segue a ri-risca o que a Ordem das Cha-chaves Cruzadas lhe dete-termina à fa-fazer. To-todos nós somos pe-peças neste jogo que é esta gue-guerra inú-nutil.
O ódio invade o corpo do bispo que antes se mostrava muito calmo. Os olhos do bispo se enchem de raiva e aversão as palavras do peão tolo.
- Cala-te. Não digas estas heresias ou vais passar a eternidade a queimar no inferno.
- Se-senhor, eu não acredito que sa-sairei deste jo-jogo. Quando esta gue-guerra acabar, eu serei mandado de volta ao no-nosso re-reino e uma nova gue-guerra vai co-começar. O senhor nu-nunca jogou xa-xadrez? O se-senhor não se sente uma pe-peça de xadrez? Nós so-somos todos mandados por uma enti-tidade que não co-conhecemos e seguimos a ri-risca suas o-ordens. O se-senhor nunca imaginou que essa me-mesma Ordem pode seguir as re-regras de uma outra O-Ordem. E essa outra O-Ordem de outra ainda ma-mais poderosa?
- Eu nunca ouvi tamanha besteira. Amanhã vou enviar uma carta para que tu voltes imediatamente ao reino e seja devidamente castigado.
- Não é necessário meu bi-bispo. Antes do ama-manhecer, nós estaremos em ple-plena bata-talha com o inimigo. A no-notícia chegou ao ca-campo de batalha antes me-mesmo do senhor.
O bispo não vira os olhos e continua seu caminho até a cabana onde ia descansar. Na manhã seguinte o bispo é interrompido por um mensageiro com uma nova carta da Ordem das Chaves Cruzadas. A carta dizia que o Rei tinha sido morto e ele deveria voltar ao reino. O bispo deveria retornar e aguardar novas ordens. O bispo sempre soube que um novo Rei devia estar já no poder e que ele somente aguardaria o começo de uma nova batalha, assim como todas as outras que ele havia vivenciado. Não era necessário que um peão fraco, tolo e gago lhe disse isso. Apesar disso, estava fora de questão interrogar a Ordem que ele sempre seguiu e menos ainda aceitar que outros tentassem lhe dizer que a Ordem não estava certa.